“Tenho dois filhos. Sempre vou ter, apesar da perda. Hoje, o Guilherme teria 28 anos, e quando tudo aconteceu ele tinha 22. Tenho também a Renata, que hoje tem 19 anos e é uma pessoa que me ajuda muito – inclusive trabalha comigo e com o meu marido.
Sou formada em psicologia. Antes, além dos atendimentos que eu fazia, nós tínhamos algumas empresas aqui em Santa Rosa, no Rio Grande do Sul: uma oficina de carro que oferecia ar condicionado veicular, e outra que vendia janelas, portas e vidraças. Apesar de dirigir desde que tirei carta, aos 18, jamais pensei que trabalharia no trânsito, carregando outra pessoa. Não tinha coragem de estar na estrada.
Tudo mudou em um domingo. Era dia 19 de fevereiro de 2017. O Guilherme ficou em casa comigo o dia todo: a gente almoçou, conversou, mexeu no celular, estávamos juntos. Ele até comentou que estava enjoado de ver filmes, que queria sair. Ele era muito alegre, sorridente e amoroso. Às vezes me sufocava de tanto que queria demonstrar o que sentia.
Naquele dia, ele tinha uma festa de aniversário de uma amiga para ir, ela tinha fechado um bar, com bebida de graça para todo mundo. O Guilherme chegaria mais cedo para ajudar a organizar.
Só que ele trabalhava na empresa conosco, e pedi para ele vir embora antes da meia-noite para conseguir trabalhar no outro dia. Ele me disse para não me preocupar, que voltaria logo para casa.
Eu tinha acabado de passar por uma cirurgia e estava de cama, com o rosto todo roxo, e não poderia levá-lo e nem buscar. Não tinha nenhum serviço de aplicativo na cidade, e táxi nem passava na cabeça da gente. Pedi para que ele não dirigisse, e ele respondeu que pegaria carona com uns amigos.
Antes de sair, o Guilherme me deu um beijo e eu desci com ele até lá embaixo. Depois que ele saiu, fui tentar dormir, só que naquele dia eu não consegui. Na verdade, já tinha alguns dias que eu estava me sentindo inquieta, apreensiva.
O tempo foi passando, deu meia-noite e o Guilherme não tinha voltado. Ligava para ele e não me atendia. Até que meu telefone tocou e eu senti algo muito ruim, não queria atender. Senti a notícia. Era uma mulher dizendo que o carro que ele estava dirigindo bateu de frente com um caminhão.
Achei estranho. Como ele bateu se estava de carona? Depois entendi que, mais cedo, ele tinha vindo para casa com o carro que um dos vendedores usava. O dele estava com o câmbio ruim. Foi com esse carro que ele dirigiu até a festa.
Mesmo com o rosto roxo da cirurgia, fui para lá. Era um lugar próximo da minha casa. Tinham muitos conhecidos nossos. Vi aquela cena e ninguém me falava nada, não me deixavam chegar perto. Fiquei tão nervosa que acho que até esqueci o que eu estava fazendo ali. Entrei em desespero.
No outro dia, o pessoal começou a me contar que os amigos que prometeram a carona não foram buscá-lo, e ele decidiu dirigir. Fiquei sabendo que, na volta, um amigo o carregou para trazer embora até metade do caminho.
Só que o Guilherme vomitou no carro. Esse amigo levou ele de volta e disse: ‘Você vai com o teu carro. Eu não vou te levar.’ Até hoje eu sinto uma dor no coração com isso. Briguei muito com esse amigo dele. Hoje a raiva passou. Se ele viesse falar comigo ia abraçar, até perdoaria. As coisas que têm que acontecer acontecem, né? Todo mundo tem um tempo para estar aqui.
Com tudo que eu passei, não consegui mais atender pessoas com a mesma dor que eu. Me senti perdida, dizia que jamais iria conseguir ir para frente. O momento da perda é estranho para qualquer mãe. Tu se sente sem chão, tua vida vai de cem a zero. Tu perde tudo o que tem na vida quando um filho se vai.
Como eu trabalhava com a dor da perda, comecei a me auto analisar para entender em que fase do luto eu estava. Aplicava o que eu aprendi comigo mesma. Sabia que, para aliviar um pouco a dor, eu teria que pôr algo para suprir, pra não doer tanto.
Não aguentava mais ficar dentro de casa. No fim de 2017, eu fui embora. Deixei meu marido e me mudei para Posadas, na Argentina, com a minha filha. Lá, resolvi estudar medicina, vi muitas coisas diferentes, tive que me adaptar ao idioma. Mas não é o suficiente. Nunca é.
Enquanto eu estava lá, tentei suicídio. No dia que eu estava no hospital, sonhei com o Guilherme. Ele me disse: ‘Não é a tua hora, mãe. Tu tem muitas coisas incríveis para viver aí sem mim. Tu vai ver muitos jovens partirem para o lado de cá e, aí sim, vai ser a tua hora. Não agora.’ Foi um sonho que pareceu tão real. Foi um incentivo.
Quando acordei no hospital, me perguntava por que eu ainda estava ali, por que não morri. Minha filha me disse: ‘Mãe, tu tem eu. Estou aqui contigo. E se eu for embora também?’ Respondi que aí eu morria de vez. Ela falou: ‘Não fala essas coisas. Já estou cansada de ver tanta dor.’ Aquilo me tocou.
Enquanto ainda estava na Argentina, descobri que um aplicativo de mobilidade começou a funcionar ali, mas os taxistas não estavam gostando. Achei a ideia interessante e pensei que, se eu voltasse para casa, talvez pudesse trabalhar com isso.
Em 2018, a economia ficou muito ruim na Argentina e acabei voltando para Santa Rosa. Os amigos do meu filho começaram a vir me visitar, felizes por eu estar de volta. E aí eu disse que eu carregaria esses jovens. Eles iam para festas, baladas, para o forró – que aqui tem muito – e eu comecei a buscar e levar para casa.
Queria só que aqueles meninos chegassem em casa com segurança, para que não acontecesse com nenhum deles o que aconteceu com o Gui, e para que as mães deles não passassem o que eu passei. Ao mesmo tempo, era a oportunidade que eu tinha de ouvir histórias sobre meu filho, especialmente para entender o que aconteceu naquele dia.
Esses amigos começaram a passar meu contato para outros amigos. No início, eu não cobrava nada, mas com o tempo algumas pessoas começaram a dar gorjeta. Até que fui gastando mais com gasolina e manutenção, e meu marido e eu pensamos que seria uma boa ideia monetizar o serviço.
Em 2019, buscamos uma plataforma que suprisse as nossas necessidades. Encontramos a Machine, que oferece tecnologia especialmente para transporte individual, e foi assim que nasceu a Carsul. É um aplicativo de mobilidade que criamos e que, hoje, atua em mais de 10 cidades da região.
Aqui em Santa Rosa, outros aplicativos assim, como os que estão em outras partes do país, não existem. O serviço virou novidade e, com muita divulgação e com um atendimento diferenciado, fomos crescendo. Lembro que no início cheguei a ser muito ameaçada de morte por taxistas. Mas não tinha medo, porque não tinha nada a perder.
Chegamos a nos tornar parceiros de supermercados e até de um serviço de unidade básica da cidade. Nós levamos pacientes que precisam fazer consultas e cirurgias em hospitais aqui ou em municípios da redondeza.
Alguns desses passageiros estão mais debilitados. É comum que alguns não sobrevivam, e às vezes a última pessoa que vão ver é o motorista. Por isso, é muito importante que eles sejam autênticos, tenham coração e escuta ativa, tratem bem. Todos são treinados para oferecer um tratamento respeitoso em todas as situações.
Por conta do que vivi, trabalhamos muito com divulgação em bares, baladas e festas noturnas. Usamos lemas como ‘Faça sua festa, mas vá embora de Carsul’ ou mesmo ‘Se beber não dirija’. Foi a forma que encontrei de continuar presente, ajudando.
No começo eu dirigia, mas para cuidar da parte operacional acabei parando. Atualmente, temos mais de 300 motoristas. Fez tanto sucesso que nos tornamos referência, e só no ano passado, chegamos a faturar R$ 5 milhões. Agora, temos planos de abrir franquias em outras partes do Brasil.
O que me surpreende não é a grandiosidade do que conquistamos, mas não esperava que eu chegaria até aqui. Penso: ‘Nossa, ainda sobrevivo.’ Encontrei uma forma de ressignificar meu luto através do meu trabalho, ao lado da minha família.
Para uma mãe, a dor de perder um filho continua sempre. É como uma ferida que vai sangrar e doer mesmo que se passe mil anos. Nunca sabemos quanto tempo o luto vai levar, mas foi vivendo que eu aprendi que, apesar da perda, é preciso saber ressignificar.
Ouvi muitos relatos de mães que passaram por uma situação parecida que ou esconderam essa dor, ou tentaram tirar a própria vida – algumas conseguiram fazer isso. Se eu pudesse dar algum conselho a elas, diria para que tentem seguir em frente pelas outras pessoas que estão do lado delas.
O que meu filho diria de mim depois de ver tudo que construí depois que ele se foi? Acho que seria isso: ‘Eu sinto muito orgulho de você. Te fiz uma pessoa mais forte.’”